Nas últimas décadas, com o desenvolvimento de novas biotecnologias (genéticas e outras) aplicadas ao estudo das primeiras fases do desenvolvimento embrionário, muito se tem avançado na compreensão de como a partir de uma única célula se dá origem a organismos multicelulares. Contudo, há ainda muitas perguntas à espera de respostas, como é normal em ciência.
O desenvolvimento embrionário humano é um processo contínuo que tem seu início quando um ovócito (óvulo) é fertilizado por um espermatozóide, dando origem a um ovócito fertilizado que se começa a dividir e a diferenciar-se em diversas fases para dar origem ao organismo que nos caracteriza.
A compreensão dos mecanismos genéticos, bioquímicos e celulares que ocorrem nas diversas fases do desenvolvimento embrionário têm conhecido muitos avanços nos últimos anos.
Contudo, as primeiras etapas do desenvolvimento embrionário que ocorrem entre a fertilização até à nidação de um embrião em fase dita de blastocisto (composto por cerca de 250 células) no útero materno, continuam a necessitar de muito mais investigação para se poder compreender, por exemplo, os mecanismos genéticos que levam à diferenciação celular para dar origem aos diferentes tipos de tecidos que compõem o organismo.
Continua também à espera de melhor compreensão o que faz com que cerca de dois terços dos ovócitos fertilizados não se desenvolvam numa gravidez normal, dando origem a abortos espontâneos que passam despercebidos.
Para tentar compreender estas e outras questões é importante que os cientistas possam investigar embriões humanos, o que levanta e sempre levantou questões éticas pertinentes.
As diversas autoridades nacionais que monitorizam e regulam as investigações em embriões humanos têm sido muito cautelosas e prudentes sobre este assunto, só permitindo que os cientistas possam realizar experiências em embriões considerados inviáveis ou que seriam de qualquer forma descartáveis.
Por outro lado, têm-se desenvolvido nos últimos anos novas técnicas de engenharia genética que permitem editar o genoma e corrigir erros genéticos em células vivas.
Uma dessas técnicas é a designada por Crispr-Casp9 que se tem revelado muito eficaz na edição de genes em genomas de células vivas. Esta técnica utiliza uma espécie de “tesoura molecular”, a enzima Cas9 (que existe na bactéria Streptococcus pyogenes), que permite aos cientistas cortar regiões específicas de ADN. P
ara a edição genética, os cientistas anexam à Cas9 um bocadinho de ARN (molécula semelhante ao ADN) que se liga à egião específica da molécula de ADN que se quer “editar”. Uma vez ligado o segmento de ARN ao ADN que os cientistas escolheram, a enzima CAS9 corta esse pedaço de ADN. É possível, desta forma, cortar zonas de genes com mutações que provocam doenças e substituí-las a seguir com ADN “normal”.
A utilização potencial desta técnica para corrigir erros genéticos em embriões de forma a eliminar futuras doenças genéticas tornou-se tema de aceso debate comunidade científica internacional.
Debater intensamente esta questão tornou-se ainda mais inadiável quando, em Abril de 2015, uma equipa de investigadores chineses divulgou ter usado pela primeira vez a Crispr-Casp9 para alterar o gene chamado HBB (cujas mutações provocam uma doença do sangue potencialmente mortal) em embriões humanos inviáveis que tinham sido fecundados por dois espermatozóides, possuindo assim um número anormal de cromossomas.
Diga-se, a propósito, que esta técnica de edição genética já tinha sido usada anteriormente em embriões de outros animais.
Entretanto, em Setembro de 2015, uma especialista britânica em células estaminais, Kathy Niakan, do Instituto Francis Crick, em Londres, pediu autorização à Autoridade de Fertilização e Embriologia Humana (HFEA, na sigla em inglês), que regula estas questões no Reino Unido, para realizar estas experiências em embriões humanos “normais”.
No passado dia 1 de Fevereiro, a HFEA deu resposta à solicitação daquela investigadora, autorizando a edição genética de embriões humanos exclusivamente para fins de investigação científica.
A autorização permite aos investigadores do Instituto Francis Crick realizar experiências durante os primeiros sete dias de desenvolvimento de embriões, ou seja até à fase de blastocisto. A implantação destes embriões no útero de mulheres está proibida.
Segundo declarações de Kathy Niakan à BBC online, “queremos compreender quais são os genes necessários para que um embrião humano se desenvolva e dê origem a um bebé saudável. Este conhecimento é muito importante porque os abortos espontâneos e a infertilidade são extremamente comuns, mas não se percebe muito bem por que é que acontecem”. Estas investigações podem produzir conhecimento útil para resolver problemas de infertilidade.
Num comunicado do Instituto Francis Crick, é adiantado que o projecto só se iniciará daqui a alguns meses, pois ainda é necessário a obtenção de aprovação ética. Nesse mesmo comunicado, pode ler-se que “os embriões usados para a investigação pelos investigadores serão de casais que fizeram tratamentos de fertilização in vitro e que ficaram com embriões excedentários. A doação será feita com consentimento informado.”
Como seria de esperar, esta autorização disparou alertas na comunidade científica internacional, assim como das diversas autoridades de regulamentação ética.
Por exemplo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida português sublinha, num parecer emitido sobre este assunto, que “na ausência de consenso científico sobre as suas consequências, os usos potenciais destas novas tecnologias devem ser abordados com extrema prudência recorrendo a um princípio de precaução que acautele o seu impacto sobre as gerações presentes e futuras”.
O debate sobre este assunto deve envolver não só a comunidade científica (que está dividida), mas também especialistas em ética, profissionais de saúde, entidades reguladoras, doentes inférteis, com doenças genéticas, respetivas famílias e o público em geral.
É um assunto que devemos acompanhar e que nos toca a todos, pelo que devemos ter sobre ele uma opinião própria e bem informada.
Autor: António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
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